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MINHA PAISAGEM É CORPORAL. ( 2020-2023)

Sua primeira individual foi apresentada no 33 programa de exposiçãoes do Centro Cultural São Paulo, com a obra “minha paisagem é corporal”. Exposta no piso Flavio de Carvalho de Março a Junho 2024. Este trabalho é processualmente feito de reconexões contínuas, um mergulho profundo nas minhas subjetividades como mulher natureza, território, raiz, mulher salvagem, mas que se conecta com a experiência de outros corpos e identidades em trânsito, que na diáspora ou em seus movimentos de vida como eu, foram já feitos paisagens pela passagem da vida. 

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Texto curatorial por A TRANSÄLIEN.  

‘’Depois de ser esquartejado, o corpo jamais retorna a seu estado íntegro, de modo que o nosso corpo- esquartejado intergeracionalmente - é testemunha do fato de que a integridade se constitui na aliança.
Que nossos corpos partidos encontram extensão e órgão uns nos outros e nas coisas - nas flores, na terra.’’
Jota Mombaça, 2019.


Parto, a princípio, para o diálogo com a obra de Gênova Alvarado, despindo-me de fórmulas pré-determinadas ao que concerne a práxis de um texto crítico, inspirada pela honestidade de sua prática livre e sensível, para então mergulhar na subjetividade da artista venezuelana cuja poética engendra na experiência do próprio viver, em sua natureza intuitiva interconectada com a ecologia das terras percorridas em diáspora, nos saberes que se expressam mais no movimento, ações, afetos e tessituras orgânicas que se fundem com O todo, do que numa metodologia meramente teórica passível mais de definição que de criação. ‘’Minha Paisagem é Corporal’’ é uma tentativa de retorno, um amalgamar-se com a natureza que pulsa nos meandros, conflitos e sutilezas de um corpo-embarcação, nos entrecaminhos registrados como memórias cartografadas sobre as linhas da pele, no aflorar da sensorialidade que irradia com o nascer do sol, na presença do mar, no canto que sai do pulmão e se torna vento, em deitar no chão e então aterrar-se.
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Me parece que estamos diante de uma espécie de fusão entre os conceitos de Arqueologia da Paisagem e da noção de transcorporeidade onde, aqui, o próprio corpo - enquanto produtor de saberes latentes nas vivências - é a ferramenta de estudo para o desenvolvimento de uma corporeidade investigativa a partir da qual é possível romper com o carrego do antropoceno e suas dicotomias cartesianas a serviço das hierarquias extrativistas e exploratórias beneficiárias apenas ao sujeito homem colonizador, ao passo em que ecoa a cosmologia indígena que intrinsecamente considera a experiência na terra em harmonia com todos os seres vivos e seus elementos, memórias e paisagens, ritualizando a vida na esfera cotidiana por meio do cuidado e da preservação da natureza indissociável a subsistência humana. Mesmo que não dissesse uma palavra, os fios de caráter político e socioambiental estão explicitamente enredados na materialidade das foto-performances da artista. Sabemos, com a natureza não se conversa com palavras.


Para além da questão migratória, ao dizer que ‘’Minha casa é meu corpo feito paisagem’’, Gênova nos leva a pensar em outros dois temas e movimentos fundamentais para o século XXI segundo Alicia Puleo (1992): o feminismo e o ecologismo.


Útero que gera, seio que nutre, mão que cuida, coração que afaga, potência cósmica de criação e nutrição, podem alimentar a todos. Incessantes em renascer, incorporam os mistérios do tempo, os elementos da natureza e a força dos saberes ancestrais. Em seus rodopios e ondas, se movem pelos ciclos, sangram a dor das queimadas. Elas que sentem e são afetadas diretamente por todo processo de mudanças climáticas e poluição de seus ventres. 


A TRANSÄLIEN, 2023.

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Nas palavras-manifesto de Eliane Brum no livro Banzeiro Okotó, desvendar o sentido de ser mulher na sociedade brasileira se deu ao conectar-se a floresta pois ‘’Os dogmas morais que constituem os pilares da supremacia branca, do patriarcado e do binarismo de gênero sustentam também o modelo capitalista que consumiu a natureza e levou o planeta à emergência climática.’’ A associação simbólica do corpo feminino com a terra enquanto organismos geradores da vida está presente no imaginário social desde os primórdios da humanidade, a exemplo de Gaia, na mitologia grega tida como a grande Deusa-Mãe que dá à luz ao universo e toda a vida a partir de suas entranhas cósmicas. No entanto, com o passar do tempo e a crescente onda do antropocentrismo no século XV e o desenvolvimento da agricultura alinhada a escravidão, o fundamentalismo religioso liderado à época pela igreja católica logo tratou de promover uma inversão cultural em resposta ao próprio temor para com aquelas que detinham toda a fonte do conhecimento passado de geração a geração, da alquimia das ervas à funcionalidade (e cura) do corpo humano, surge então a Inquisição transformando as mulheres nas primeiras vítimas do capitalismo.


Concomitantemente, a ideia de progresso criada com a revolução industrial baseada na tomada de terras, exploração da mão de obra indígena e tantas outras mazelas, trouxe à tona a degradação ambiental do planeta e o estado de ebulição climática no qual vivemos hoje em dia. É nítido como perante as leis patriarcais o corpo feminino, a natureza e tudo que diverge da representação do homem branco é, portanto, passível de dominação, apropriação e controle. É neste contexto que a consciência da preservação ambienal e a luta feminista se fundem em ecofeminismo: ciente de que a justiça social pelos direitos das mulheridades e a ecojustiça devem caminhar juntas. Tais infusões compõem na mesma intensidade o arquipélago de paisagens de Gênova, onde seus contornos vão de encontro com a superfície da natureza, bem como com o que há de mais profundo, subjetivo e sensitivo. Assim, o conjunto de obras presente em ‘’Minha Paisagem é Corporal’’ forma um mapa esquemático de sua travessia enquanto corpo-no-mundo pela América Latina.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 


 

 

 

‘’Casca de Pele’’ (2021) é emblemática para a compreensão da narrativa supracitada pois está na ferida/cicatriz impressa em primeiro plano a perfeita simbiose entre imagem-conceito medular de toda a mostra: ambas paisagem e corporeidade estão ali entrelaçadas compartilhando as semelhanças de um corpo que traz na pele as marcas de sua passagem por este plano. Um corpo integrado com o mundo natural do qual nós e todos os organismos somos parte. Uma paisagem como extensão daquilo que somos, como uma ramificação, um eu estendido. Um corpo que compreende os ciclos da vida e entrega-se ao desintegrar da organicidade. Corpo que sabe que é na essência feminina da mãe natureza onde encontramos a cura para algumas das feridas abertas pela cultura.


ser bruxa é saber conhecer a grande magia da vida ser bruxa é não se desligar da natureza
que é a própria vida
tento todos os dias não me desligar
e quem nunca se desligou
não precisa de religião para religar.

A TRANSÄLIEN, 2020.

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